30 de março de 2013

E quando Deus não tem artigo?

Em grego, a palavra artigo é “αρθρον” (artron). Portanto, “anartro” é a designição para uma palavra desacompanhada de artigo. Nesse artigo iremos observar os usos anartros de θεος no Novo Testamento. A intenção é notar os modos como esse substantivo é usado sem artigo para verificar se a acusação dos Testemunhas de Jeová sobre o uso anartro em João 1:1c é verdadeira.

A acusação é simples: Como em João.1.1c (e o Verbo era Deus – TNM - Tradução Novo Mundo) João usa o substantivo θεος sem artigo ele não estaria a fazer indicação de que o Logos é Deus, e portanto traduzem como um deus. Para sustentar essa opinião afirmam que sempre que o substativo θεος é usado sem artigo ele não faz referência ao Deus Pai, ou a Jeová como eles preferem dizer.
A questão, portanto, é: Suporta o Novo Testamento esta visão? Todos os usos anartros de θεος não são referências a Deus?  É isto verdadeiro? É isso que vamos verificar.
No Novo Testamento o substativo θεος é usado cerca de 1319 vezes sendo que aproximadamente 283 vezes ele acontece sem artigo. É interessante notar que apenas em 16 ocasiões a TNM traduz o termo ou de modo indefinido, qualitativo ou plural. Ou seja, em apenas seis por cento das vezes a TNM é fiel ao princípio que defende em João1:1.
Se observado atentamente, notar-se-á que o substantivo θεος anartro no Novo Testamento é usado de quatro modos diferentes: (1) Quando uma clara relação de contraste entre o que é humano, terreno, e o que é divino celestial; (2) quando a expressão está na boca de um não cristão ou um judeu (3) quando uma qualidade ou atributo de Deus é anunciado; (4) quando se usa o termo como nome próprio. Há largas evidências dessas distinções no Novo Testamento e abaixo, consideraremos alguns desses casos.

1. Relação de Contraste

Quando a divindade é contrastada com o que é humano, ou com o universo como distinto do Seu Criador, ou com a natureza ou com os atos dos espíritos malignos o Novo Testamento pode empregar o substantivo θεος anartro.
Um exemplo bem interessante desse tipo de uso no NT é encontrado em Rm.8:7-9
Rom 8:7-8: “διότι τὸ φρόνημα τῆς σαρκὸς ἔχθρα εἰς Θεόν· τῷ γὰρ νόμῳ τοῦ Θεοῦ οὐχ ὑποτάσσεται· οὐδὲ γὰρ δύναται· οἱ δὲ ἐν σαρκὶ ὄντες Θεῷ ἀρέσαι οὐ δύνανται”
A TNM assim verte o texto: “por que a mentalidade segundo a carne significa inimizado com Deus, visto que não está em sujeição a Deus, de fato, nem pode estar. De modo que os que estão em harmonia com a carne não podem agradar a Deus[1].
Nesse caso notamos que a distinção entre o que é de Deus e humano é tão clara que poderia-se dizer que o artigo não é necessário. Mais interessante do que isso é que a TNM entende que, mesmo anartro, θεος aqui é uma referência a Deus Pai (Jeová para eles).
Vamos observar um outro caso onde isso é evidente:
Mateus 4.4
(GNT) ὁ δὲ ἀποκριθεὶς εἶπε· γέγραπται, οὐκ ἐπ᾿ ἄρτῳ μόνῳ ζήσεται ἄνθρωπος, ἀλλ᾿ ἐπὶ παντὶ ῥήματι ἐκπορευομένῳ διὰ στόματος Θεοῦ.
(TNM) Mas ele disse em resposta: Está escrito: O homem tem de viver, não somente de pão, mas de cada pronunciação procedente da boca de Jeová[2]
Esse verso é especial, pois Jeová é a tradução de θεος anartro. Não há dúvidas que a TNM entende que esse uso anarto é uma referência a Deus Pai. Esse tipo de ocasião acontece diversas vezes no NT, confira: Mt.6.24; 19.26; Lc.12.21; At,5.29; Rm 9.5; 1Co.10.20.

2. Voz de judeus e pagãos

Quando não cristãos falam de Deus, isso pode acontecer sem artigo. Se observarmos as ocasiões em que um não cristão não judeu usa o termo θεος veremos que ele o faz sem artigo. Observe:
Act 12:22
(GNT) ὁ δὲ δῆμος ἐπεφώνει· Θεοῦ φωνὴ καὶ οὐκ ἀνθρώπου.
(TNM) O povo reunido por sua vez, começou a gritar: A voz de um deus e não de homem.
Este é um caso interessante: A multidão aclama Herodes deus enquanto está acentado na cadeira do juiz, fazendo discurso publico. É bem provável que alguns judeus fizessem parte dessa multidão, até por que Flávio Josefo descreve que alguns dos judeus tinha essa percepção sobre Herodes:
“And presently his flatterers cried out, one from one place, and another from another (though not for his good), that he was a god; and they added, ‘Be thou merciful unto us; for although we have hitherto reverenced thee only as a king, yet shall we henceforth own thee as a superior to mortal nature”
Mas, eu gostaria de charmar a sua atenção para o fato de que tanto θεος quanto ἄνθρωπος estão sem artigo, mas são traduzidos de modo diferente pela TNM. Não haveria qualquer demérito em dizer um homem, mas é ao menos interessante que essa tradução evitasse usar um modo de tradução que para eles é tão fundamental em João 1:1.
Noutras ocasiões, os apóstolos são confundidos com divindades gentílicas após realizarem alguns atos que os não cristãos não judeus não teriam entendido. Observe:
Act 28:6
(GNT) οἱ δὲ προσεδόκων αὐτὸν μέλλειν πίμπρασθαι ἢ καταπίπτειν ἄφνω νεκρόν. ἐπὶ πολὺ δὲ αὐτῶν προσδοκώντων καὶ θεωρούντων μηδὲν ἄτοπον εἰς αὐτὸν γινόμενον, μεταβαλόμενοι ἔλεγον Θεόν αὐτὸν εἶναι.
(TNM) Mas eles esperavam que fosse inchar com uma inflamação ou cair repentinamente morto. Depois de terem esperado por muito tempo e terem observado que nada nocivo lhe acontecia, mudaram de idéia e começaram a dizer que ele era um deus
Esta é uma declaração interessante: diante de uma crença politeísta, alguém afirmar que uma pessoa é um deus não é contraditória com a sua própria crença. A situação a que Paulo tinha sido exposto na ocasição, fez com que aqueles não cristãos que não tinham um pano de fundo judaico ou monoteísta pensassem que Paulo era uma divindade na terra. Essa não era a primeira ocasião que isso acontecia com Paulo:
Atos 14:11
(GNT) οἱ δὲ ὄχλοι ἰδόντες ὃ ἐποίησεν ὁ Παῦλος ἐπῆραν τὴν φωνὴν αὐτῶν Λυκαονιστὶ λέγοντες· οἱ θεοὶ ὁμοιωθέντες ἀνθρώποις κατέβησαν πρὸς ἡμᾶς·
(TNM) E as multidões, vendo o que Paulo tinha feito, elevaram suas vozes, dizendo na língua licaônica: Os deuses tornaram-se iguais a humanos e desceram a nós.
É bem interessante que nesse caso o texto grego ofereça o artigo definido para descrevê-los. Sabe-se que diante do panteão gentílico, Zeus e Hermens não eram os únicos deuses e portanto o artigo definido aqui não é um modo de apresentar a exclusividade desses dois deuses.
Considerando essas situações é observável que para gentios, a ideia de um deus entre muitos não é minimamente problemática e parece que era isso que eles estavam a ver em ambas as ocasiões cf. At.5.39; 17.23).
Contudo, temos que considerar com mais cautela quando vemos a declaração de um judeu a usar o vocábulo θεος anartro. Nalgumas ocasiões a presença de Jesus entre os judeus as opiniões eram contraditórias, observe:
João 9:16
(GNT) ἔλεγον οὖν ἐκ τῶν Φαρισαίων τινές· οὗτος ὁ ἄνθρωπος οὐκ ἔστι παρὰ Θεοῦ, ὅτι τὸ σάββατον οὐ τηρεῖ. ἄλλοι ἔλεγον· πῶς δύναται ἄνθρωπος ἁμαρτωλὸς τοιαῦτα σημεῖα ποιεῖν; καὶ σχίσμα ἦν ἐν αὐτοῖς.
(TNM) Portanto, alguns dos fariseus começaram a dizer: Este homem não é de Deus por que não observa o sábado. Outros começaram a dizer: Como pode um homem, que é pecador, realizar sinais desta sorte. De modo que havia uma divisão entre eles.
A visão que os judeus tinham a seu respeito era clara: ele era um homem. Entretanto, os religiosos  viam-no como alguém que não era de Deus, pelo fato de que, do ponto de vista deles, Jesus não guardava o sábado. Contudo, alguns, vendo o que ele fazia não poderiam acreditar que um homem pecador pudesse realizar o que Ele realizava.
É interessante nesse caso que embora o texto traga o verbo θεος anartro, é clara a referência a Deus Pai (Jeová). Como monoteístas não faria sentido aos judeus imaginar que Jesus não era de alguma divindade pagã, mas o texto teria todo sentido se se falasse de Jeová. O fato de θεος estar sem artigo não desmerece a referência a Deus feita nesse verso (cf. Jo-ao 9:24).
É por isso, que pouco à frente no texto vemos um uso interessante do mesmo vocábulo:
João 10:33
(GNT) ἀπεκρίθησαν αὐτῷ οἱ ᾿Ιουδαῖοι λέγοντες· περὶ καλοῦ ἔργου οὐ λιθάζομέν σε, ἀλλὰ περὶ βλασφημίας, καὶ ὅτι σὺ ἄνθρωπος ὢν ποιεῖς σεαυτὸν Θεόν.
(TNM) Os judeus responderam-lhe: Nós te apedrejamos, não por uma obra excelente, mas por blasfêmia, sim, por que tu, embora sejas homem, te fazes deus.
Nesse texto temos que fazer algumas observações:
  1. Embora o substantivo θεος esteja desacompanhado de artigo, os tradutores não ousaram verter esse texto com o acréscimo do artigo indefinido. É válido dizer que o acréscimo desse artigo indefinido seria interessante para o argumento cristológico TJ: Por não ser igual a Deus, Jesus fazia-se igual a um deus. Contudo, essa expressão não caberia na boca dos judeus que argumentavam contra Jesus.
  2. Ou seja, uma vez que o texto não pode dizer “um deus”, por que os tradutores não usaram a expressão: “Jeová”, ou ao menos o D maiúsculo na palavra deus? Faria muito mais sentido se o texto dissesse que os judeus estavam a apedrejar Jesus pelo fato de ele estar a fazer-se igual ao Deus de Israel, Jeová. Aliás, é isso o que o texto diz, mas não é essa a impressão que a TNM transmite ao texto. Esse é mais um caso onde a teologia TJ coordena a tradução de modo pernicioso: Ela até traduz de modo correto, mas não pode atribuir uma letra maiúscula ao termo Deus, pois isso poderia por em risco a sua teologia.
  3. Mas, a grande questão aqui é: Quem é que os judeus tinham em mente? Será que uma espécie de deus intermediário? Não parece esse o motivo do ódio contra Jesus. Eles buscavam apedrejar por blasfémia, ou seja, a busca de igualdade com Deus.
O fato observado nesse texto é a confusão que Jesus estava a causar entre os judeus: Eles tinham a convicção que Ele era humano, mas a argumentação de igualdade com Deus (que eram entendidas assim) o faziam parecer um blasfemo. É interessante notar que um judeu no primeiro século poderia entender perfeitamente as alegações de Jesus. O fato apresentado nesse texto não é a incapacidade de compreender, mas de aceitar.

3. Uso como nome próprio ou título

Quando o substantivo Deus é usado como um nome, o autor pode usá-lo sem artigo. Isso acontece extensivamente no NT. Esse uso pode ser feito em referência a Cristo e aos cristãos. Abaixo transcrevo algumas ocasiões em que esse tipo de uso diz respeito a cristãos:
Mateus 5.9
(GNT) μακάριοι οἱ εἰρηνοποιοί, ὅτι αὐτοὶ υἱοὶ Θεοῦ κληθήσονται.
(TNM) Felizes os pacíficos, por que serão chamados filhos de Deus
João 1:12
(GNT) ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα Θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ,
(TNM) No entanto, a tantos quantos o receberam, a estes deu autoridade para se tornarem filhos de Deus, por que exerciam fé no seu nome
Romanos 8:14
(GNT) ὅσοι γὰρ Πνεύματι Θεοῦ ἄγονται, οὗτοι εἰσιν υἱοὶ Θεοῦ.
(TNM) Pois todos os que são conduzidos pelo espírito de Deus, estes são filhos de Deus.
Vários são os textos desse tipo no NT, e com esses não nos vamos ocupar, pois está claro que, embora seja anartro o uso de referência é a Deus Pai (Jeová). Vamos concentrar a nossa atenção às ocasiões em que expressões desse tipo se referem ou a Jesus Cristo ou a Deus:
Mateus 14:33
(GNT) οἱ δὲ ἐν τῷ πλοίῳ ελθόντες προσεκύνησαν αὐτῷ λέγοντες· ἀληθῶς Θεοῦ Υἱὸς εἶ.
(TNM) Então os que estavam no barco prestaram-lhe homenagem, dizendo: Verdadeiramente tu és Filho de Deus.
Esse é um daqueles casos interessantes: (1) O que é que os discípulos tinham em mente ao chamarem Jesus  Filho de Deus? (2) O que significa a expressão “προσκυνεω”?
De fato, a resposta da primeira repousa na resposta da segunda. O conceito προσκυνεω tem sido debatido entre cristãos e TJs  já algum tempo. Normalmente, os TJs que tem acesso a léxicos citam que essa expressão era comum entre povos orientais de respeito. De fato, o Thayer`s Greek Lexicon apresenta essa opção para o termo. Entretanto, esse não era o único modo como esse termo era entendido. O léxico Lidell-Scott também apresenta diversas ocasiões onde esse termo é usado fora do NT para descrever a adoração a divindades pagãs, inclusive, ele apresenta ocasiões onde isso é realizado em adoração a lugres sagrados. O Louw-Nida acredita que o termo seja usado no NT em referência à atitude de alguém diante de um divindade em adoração, veneração. É interessante notar que em diversas ocasiões é exatamente esse o sentido auferido pelo termo. Observe:
Atos 7:43
(GNT) καὶ ἀνελάβετε τὴν σκηνὴν τοῦ Μολὸχ καὶ τὸ ἄστρον τοῦ Θεοῦ ὑμῶν ῾Ρεμφάν, τοὺς τύπους οὓς ἐποιήσατε προσκυνεῖν αὐτοῖς· καὶ μετοικιῶ ὑμᾶς ἐπέκεινα Βαβυλῶνος.
(TNM).Mas, acolheste para vós a tenda de Moloque e a estrela do deus Refã, as figuras que fizestes para adorá-las. Consquentemente, eu vos deportarei para além da Babilónia.
É interessante que um judeu usasse a o termo “προσκυνεω” para descrever a idolatria do seu povo. Mais interessante é que ele está a citar Amós 5:25-26 como descrição dessa idolatria. Ou seja, quando esse termo era usado para descrever o ato de prostrar-se ante idolos, o sentido é claramente o de adoração. Entretanto, é válido observar outros dois exemplos:
Mateus 4:9
(GNT) καὶ λέγει αὐτῷ· ταῦτά πάντα σοι δώσω, ἐὰν πεσὼν προσκυνήσῃς μοι.
(TNM) e disse-lhe: Todas estas coisas te darei se te prostrares e me fizeres um ato de adoração
Nesse verso vemos dois termos interessantes: prostar e adorar. A palavra que descreve o ato de colocar-se de joelhos perante alguém (prostrar) é “πιπτω” e adorar é a palavra “προσκυνεω”. Ou seja, o grego tem mais de uma palavra para descrever o ato de reverência perante uma pessoa. Por isso, é interessante que “προσκυνεω” tenha sido usado aqui apenas em referência à adoração que Satanás esperava receber de Jesus Cristo.
Esse é um momento oportuno para perguntar se Satanás queria mesmo uma adoração. Seguindo o modo de raciocínio TJ, o uso desse termo significaria apenas o ato de reverenciar, ou de prestar homenagem a Satanás. Contudo, a resposta de Jesus demonstra exatamente o contrário:
Mateus 4:10
(GNT) τότε λέγει αὐτῷ ὁ ᾿Ιησοῦς· ὕπαγε, Σατανᾶ· γέγραπται γάρ, Κύριον τὸν Θεόν σου προσκυνήσεις καὶ αὐτῷ μόνῳ λατρεύσεις.
(TNM) Jesus disse-lhe então: Vai-te Satanás! Pois está escrito: É a Jeová, teu Deus, que tens de adorar e é somente a ele que tens de prestar serviço sagrado.
Muito interessante nesse texto é que Jesus entende a proposta de Satanás como uma violação de Deuteronomio 6:13. A proposta era adoração como reconhecimento de Divindade, como merecedor de prostrar-se para cultuar.
Agora a pergunta, qual  a reação dos discípulos ao προσεκύνησαν (adorar) a Jesus, a TNM traduziu como “prestar homenagem[3]? Certamente por que não podem admitir que Cristo possa receber adoração.
O que temos a dizer do texto de Mt.14:33, quando os discípulos  chamaram a Jesus Filho de Deus? Que os discípulos o adoraram por reconhecer a sua Divindade e a expressão Filho de Deus é a confirmação desse fato.
É importante demosntrar que essa não é a única ocasião em que isso acontece em referência a Cristo. Observe alguns textos:
Mateus 27:54 (cf. Mc.14.39)
(GNT) ῾Ο δὲ ἑκατόνταρχος καὶ οἱ μετ᾿ αὐτοῦ τηροῦντες τὸν ᾿Ιησοῦν, ἰδόντες τὸν σεισμὸν καὶ τὰ γενόμενα ἐφοβήθησαν σφόδρα λέγοντες· ἀληθῶς Θεοῦ Υἱὸς ἦν οὗτος.
(TNM) Mas o oficial do exército e os que estavam com ele vigiavam sobre Jesus, quando viram o terramoto e as coisas que aconteciam, ficaram com muito medo, dizendo: Este certamente era o Filho de Deus.
Lucas 1:35
(GNT) καὶ ἀποκριθεὶς ὁ ἄγγελος εἶπεν αὐτῇ· Πνεῦμα ῞Αγιον ἐπελεύσεται ἐπὶ σέ, καὶ δύναμις ὑψίστου ἐπισκιάσει σοι· διὸ καὶ τὸ γεννώμενον ἅγιον κληθήσεται υἱὸς Θεοῦ.
(TNM) O anjo disse-lhe em resposta: Espirito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te encobrirá. Por esta razão, também, o nascido será chamado santo, Filho de Deus.
João 1:18
(GNT) Θεὸν οὐδεὶς ἑώρακε πώποτε· μονογενὴς θεος ὁ ὢν εἰς τὸν κόλπον τοῦ πατρὸς, ἐκεῖνος ἐξηγήσατο.
(TNM) Nenhum homem jamais viu a Deus; o deus unigénito, que está [na posição] junto ao seio do Pai, é quem o tem explicado.
Embora muitos outros exemplos pudessem ser demontrados, esses são suficientes. Os dois primeiros refletem o que já temos demonstrado. Entretanto, o último verso merece a nossa atenção por dois motivos: (1) O termo θεος é anartro quando está em referência a Deus Pai (Jeová) e (2) é anartro em referência ao Filho.
Não há qualquer dúvida de que o Deus Pai é mencionado no início do verso, aliás, o texto mostra claramente que o Filho é quem explica (apresenta, demosntra) o Pai. A questão é como entender o título μονογενὴς θεος oferecido a Cristo.
Permitam uma pequena reflexão: μονογενὴς θεος é o modo pelo qual João apresenta a divindade do Filho, chamando-lhe claramente Deus. Isso é tão evidente que a TNM traz um artigo definido para identificá-lo, entretanto, o faz em letra minúscula, pois não pode admitir que o texto diga que Jesus é Deus.
O termo μονογενὴς enfatiza a singularidade de Cristo de modo que só Ele é Filho de Deus como Ele é. Ele é o único da sua espécie, o mais amado dentre todos: Por que ele é θεος.
Como é bem evidente até aqui, o uso anartro de θεος não diz muito sobre como o texto deve ser entendido. Existem diversos outros exemplos desse tipo de uso do termo no NT e o leitor fará bem se os conhecer. (Algumas ocorrencias: Lc 2:14, 40, 52; 3:2; 20:36, 38, Jo.1:6; 1:13; 3:21; 6:45; 9:33; 10:34; 17:3; At. 7:40; 15:8; Rm 1.4, 7, 23; 2:17; 8:16… etc)

4. Descrição da divindade

Em muitas ocasiões no NT quandos os autores tem a intenção de qualificar, ou seja atribuir qualidades a Deus, eles podem fazê-lo com o substantivo θεος anartro. Esse uso é frequente em Paulo e o NT é repleto desse tipo de uso.
Só no primeiro capítulo de Romanos, Paulo faz sete (Rm.1:1, 7, 16, 17, 18, 23) usos de θεος anartro, e em três ocasiões vemos esse tipo de uso. Vamos observar abaixo:
Romanos 1:16
(GNT) Οὐ γὰρ ἐπαισχύνομαι τὸ εὐαγγέλιον τοῦ Χριστοῦ· δύναμις γὰρ Θεοῦ ἐστίν εἰς σωτηρίαν παντὶ τῷ πιστεύοντι, ᾿Ιουδαίῳ τε πρῶτον καὶ ῞Ελληνι.
(TNM) Pois eu não me envergonho das boas novas; são de fato, o poder de Deus para a salvação de todo aquele aquele que tem fé, primeiro para o judeu e também para o grego.
Romanos 1:17 (cf. Rm.3.5, 21-22)
(GNT) δικαιοσύνη γὰρ Θεοῦ ἐν αὐτῷ ἀποκαλύπτεται ἐκ πίστεως εἰς πίστιν, καθὼς γέγραπται· ὁ δὲ δίκαιος ἐκ πίστεως ζήσεται.
(TNM) pois nelas é que se revela a justiça de Deus em razão da fé e para com a fé, assim como está escrito: O justo viverá pela fé.
Romanos 1:18
(GNT) ᾿Αποκαλύπτεται γὰρ ὀργὴ Θεοῦ ἀπ᾿ οὐρανοῦ ἐπὶ πᾶσαν ἀσέβειαν καὶ ἀδικίαν ἀνθρώπων τῶν τὴν ἀλήθειαν ἐν ἀδικίᾳ κατεχόντων,
(TNM) Pois o furor de Deus está sendo revelado desde o céu contra toda a impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade de modo injusto.
É interessante notar que todas as vezes que Deus foi caracterizado nestes versos Paulo não usou artigo para referir-se a Deus. É bem verdade que em outras ocasiões ele o fez de modo articulado. Mas, é importante notar que na sua mente não há qualquer divisão de referência sobre quem é indicado com artigo ou sem artigo: Ele dirige-se a Deus Pai (Jeová) com e sem artigo.
Esse fato é claramente observado nos escritos paulinos, observe:
Romanos 13:1
(GNT) Πᾶσα ψυχὴ ἐξουσίαις ὑπερεχούσαις ὑποτασσέσθω. οὐ γὰρ ἔστιν ἐξουσία εἰ μὴ ὑπὸ Θεοῦ· αἱ δὲ οὖσαι ἐξουσίαι ὑπὸ τοῦ Θεοῦ τεταγμέναι εἰσίν·
(TNM) Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores; pois não há autoridade exceto por Deus; as autoridades existentes acham-se colocadas por Deus nas suas posições relativas.
Fora a má tradução da sentença “οὐ γὰρ ἔστιν ἐξουσία εἰ μὴ ὑπὸ Θεοῦ·”, é interessante notar o uso intercambiável do artigo quando Paulo fala sobre Deus Pai (Jeová). Na primeira referência feita a Deus, Paulo usa a expressão “ὑπὸ Θεοῦ·” ao passo que usa “ὑπὸ τοῦ Θεοῦ”. No texto é clara a referência a Deus Pai (Jeová). Se a regra do θεος anarto de João1:1c for usada aqui, teríamos que entender que ora o texto fala de Deus, ora de um deus, mas sabemos que isso não é verdadeiro.
É também interessante notar que algumas descrições de Deus, que o mostram como exclusivo, também são feitas sem artigo, observe:
Romanos 16:27:
(GNT) μόνῳ σοφῷ Θεῷ διὰ ᾿Ιησοῦ Χριστοῦ, ᾧ ἡ δόξα εἰς τοὺς αἰῶνας· ἀμήν.
(TNM) a Deus, único sábio, seja a glória por intermédio de Jesus Cristo, para sempre. Amém.
A TNM aqui suaviza a expressão grega “μόνῳ σοφῷ Θεῷ”. Se tomada literalmente poderá dizer: “Ao único sábio Deus”. A idéia da exclusividade nesse texto é claramente observado pelo adjetivo “μόνος”, mas toda a sentença é escrita sem artigo. Certamente isso não faz qualquer demérito a quem Deus é, mas por que o faria em relação a Cristo em Jo.1.1c? A argumentação TJ nesse quesito começa a mostrar-se insuficiente: Não há qualquer razão para o uso anartro de θεος significar “um deus”.
Apesar de serem muitos os casos como esses no NT, gostaria de apresentar apenas mais um, encontrado em 1Coríntios:
1Coríntios 8:4
(GNT) Περὶ τῆς βρώσεως οὖν τῶν εἰδωλοθύτων, οἴδαμεν ὅτι οὐδὲν εἴδωλον ἐν κόσμῳ, καὶ ὅτι οὐδεὶς Θεὸς ἕτερος εἰ μὴ εἷς.
(TNM) Ora, acerca de comer alimentos oferecidos a ídolos, sabemos que o ídolo nada é no mundo, e que não há Deus senão um só.
1Coríntios 8:5
(GNT) καὶ γὰρ εἴπερ εἰσὶ λεγόμενοι θεοὶ εἴτε ἐν οὐρανῷ εἴτε ἐπὶ τῆς γῆς, ὥσπερ εἰσὶ θεοὶ πολλοὶ καὶ κύριοι πολλοί,
(TNM) Pois, embora haja os que se chamem deuses, quer no céu quer na terra, assim como há muitos deuses e senhores
1Coríntios 8:6
(GNT) ἀλλ᾿ ἡμῖν ες Θεὸς ὁ πατήρ, ἐξ οὗ τὰ πάντα καὶ ἡμεῖς εἰς αὐτόν, καὶ εἷς Κύριος ᾿Ιησοῦς Χριστός, δι᾿ οὗ τὰ πάντα καὶ ἡμεῖς δι᾿ αὐτοῦ.
(TNM) para nós há realmente um só Deus, o Pai, de quem procedem todas as coisas e nós para ele; e há um só Senhor Jesus Cristo, por intermédio de quem sõ todas as coisas, e nós por intermédio dele.
Neste breve texto vemos três usos interessantes do substantivo θεος anartro. No primeiro vemos a clara declaração de que não existe qualquer outro Deus (Jeová). Esse uso está em conformidade Romanos 16:27. Nessa caso, não temos qualquer dúvida de que a ênfase aqui é o Deus Pai (Jeová).
Contudo, no segundo verso vemos o uso de anartro θεος no plural. Essa afirmação merece a nossa atenção: Paulo afirma que não existe apenas um Deus, depois diz que existem aqueles que se dizem deuses e que esses são muitos. A ideia aqui é que Paulo fala da caracterização que poderia ser encontrada numa cidade pagã como Corínto: a idolatria era algo forte na cidade, e por isso, era possível encontrar ao redor dos cristãos coisas ou pessoas denominadas deuses, mas que de fato não o eram. Eram divindades por nomenclatura não por essência. Mas, é interessante notar que a TNM não atribui artigo indefinido nesse usos anartro de θεος, em nenhuma das duas ocasiões que acontecem aqui: A TNM traduziu para o português sem qualquer artigo, o que sabemos que é uma boa tradução aqui. Mas, mais uma vez, a regra do θεος anartro de João1:1.c não é usada.
Mas, vamos ao último verso mencionado: Note que a tradução da TNM diz: “há realmente um só Deus, o Pai”. Nesse verso, Paulo faz uso do termo “εἷς” como numeral para evidenciar a singularidade de Deus ante aos muitos deuses de Corinto. Outro fato interessante é que ele chama esse único Deus de ὁ πατήρ, o Pai. Esse único Deus, o Pai (Jeová) é aquele mesmo Deus do verso quatro que é descrito sem artigo grego. Ou seja, não há qualquer demérito conceitual a Deus pelo fato de que o substantivos θεος é anartro.

Conclusão

O que podemos dizer da TNM em ocasiões em que o substantivo θεος é usado sem artigo?
  1. Podemos dizer com certeza que ela opta por acrescer o artigo indefinido nas ocasiões em que um não cristão fala, como vimos nos exemplos de Atos.
  2. Também vimos que em nenhuma ocasião em que o termos faz referência a Deus Pai (Jeová) veio acompanhada de artigo indefinido da tradução para o Português.
  3. Também vimos que, traduções diferentes dessas apenas ocorreram quando o substantivos θεος anartro estava no plural, ocasiões que tem-se por certo não tratar de Deus.
  4. É válido lembrar que também vimos duas ocasiões (Jo.1.18; 10.33) onde o substantivo θεος anartro é usado em referência a Cristo e a TNM não ousou acrescer artigo indefino na sentença.
Em outras palavras, a TNM só optou por acrescer artigo indefinido em tradução ao substantivo θεος anartro em referência a Cristo em uma ocasião distinta e específica: João 1.1c. Normalmente os TJ afirmam que sua tradução é livre de apelos teológicos, mas nosso estudo demonstrou exatamente o contrário: Na tradução de João 1.1c ela foi parcial e motivada por teologia, não por gramática ou coerência de critérios de tradução.
Por isso, podemos dizer asseguradamente diante das evidências apresentadas: No NT o uso anarto de θεος não implica em uso de artigo indefinido na tradução, como se isso fosse uma regra. Muito pelo contrário, são raras e poucas as ocasiões em que isso acontece, e normalmente é devido a um fator contextual.
Assim, nossa pergunta permanece: Por que a TNM mantém o artigo indefinido em Jo.1.1c?

[1] Vamos considerar o modo de tradução da TNM nesses versos:
  1. Ao traduzir a expressão “τῆς σαρκὸς” os tradutores optaram por acrescer a expressão “segundo”. Essa tradução reflete uma certa inabilidade dos tradutores, pois para que essa tradução fosse possível era necessário que a expressão estivesse no acusativo acompanhado da preposição “κατὰ”. Essa simples alteração remove o peso do argumento de Paulo nesses versos. O Genitivo aqui é de posse, ou seja, a mentalidade que pertence à carne (a mentalidade da carne).
  2. Ao traduzir a expressão “εἰς Θεόν” os tradutores minimizaram o impacto do contraste oferecido na primeira senteça. O conceito de “εἰς” aqui foi abrandado e o contraste foi suavizado. Como a intenção de Paulo nesse texto é apresentar o claro contraste entre o que é de Deus e o que é natural do homem decaído em pecado: Por isso, uma tradução mais adequada seria: “inimizade contra Deus”.
  3. Ao traduzir “ἐν σαρκὶ” os tradutores alteração o status da pessoa que Paulo descreve aqui. Se observado com atenção, Paulo fala sobre os que estão na carne, uma condição anterior a salvação. Entretanto, a TNM verte como se Paulo estivesse falando de uma situação. A questão não é sobre estar em harmonia (palavra que nem consta no texto) com a carne, mas estar em uma condição: na carne. Considerando essas pequenas modificações, o texto passa a dizer algo diametralmente oposto ao que Paulo quis que ele dissesse.
[2] A tradução de “ζήσεται” oferecida nesse texto é mais circunstancial que gramatical. Ele é apresentado como presente histórico, mas está claramente no futuro, sendo melhor traduzido por “viverá”.
[3] Observe que o mesmo acontece em Mt.2.2