Jesus viveu num tempo quando a esperança judaica de uma
pronta vinda do Messias político se intensificou grandemente. Uma quantidade de
escritos apocalípticos, sob nomes falsos ou pseudónimos, circulavam com grande
profusão, e mantinham a esperança messiânica candente aplicando a mensagem do
juízo de Daniel e de outras passagens proféticas ao seu próprio tempo e
situação. Os títulos de algumas destas obras pseudoepigráficas são: 4 Esdras, 1
Enoc, Apocalipse de Baruque, Livro dos Jubileus.
Os termos "apocalíptico" e
"apocalipticismo" foram usados mais tarde pelos eruditos para indicar
as escatologias especulativas e contraditórias contidas nesses escritos do
judaísmo tardio. As três características dominantes desse apocalipticismo judeu
foram as seguintes: (1) O juízo cósmico-universal em torno do Israel nacional
ou a um fiel remanescente judeu; (2) a substituição súbita da presente era
pecaminosa pela criação de um mundo sem pecado e um novo cosmos; e (3) o fim
predeterminado deste mundo pecaminoso e a vinda iminente do Messias. Esta
urgência frequentemente estava apoiada por cálculos contraditórios de períodos
de tempo na história mundial.
A maioria dos escritores apocalípticos acreditavam que o fim
desta era pecaminosa estava perto, e que ocorreria em sua geração. Também
acreditavam que eles eram os verdadeiros intérpretes dos profetas canónicos de
Israel com respeito à sua própria crise. Um exemplo notável foi a comunidade de
Qumran, cujo fundador e professor ensinou que a predição de Habacuque de um remanescente
do povo de Deus que sobreviveria (Hab. 2:4) estava cumprindo-se em sua própria
e única seita nas cavernas do Mar Morto.
Contra o fundo desta esperança iminente comum do judaísmo do
século I de nossa era, o emprego que Jesus fez de alguns símbolos apocalípticos
bem conhecidos chega a ser mais significativo. Mostra o enfoque inovador da
mensagem do evangelho que proclamou Jesus. Cristo deu novo significado a termos
apocalípticos tão populares como: "Filho do Homem",
"juízo", "vida eterna e ressurreição", "reino de
Deus", "esta era e a era por vir". Todas estas expressões eram
mais ou menos termos técnicos nos esquemas apocalípticos do judaísmo tardio. A
mensagem de Jesus surpreendeu os judeus de seu tempo porque deu a cada símbolo
apocalíptico um novo significado messiânico ou cristocêntrico que despedaçou
seus sistemas
escatológicos. Os odres velhos não podiam conter o espumoso vinho
novo de sua mensagem de um cumprimento presente em si mesmo (ver Luc. 5:37,
38).
A conexão mais dramática do Jesus com o livro do Daniel e os
escritos judeus tardios foi sua autodesignação explícita como "o Filho do
Homem" (65 vezes nos Evangelhos sinópticos e 12 vezes no quarto
Evangelho). Ele se aplicou este titulo em forma consistente. Era a forma
própria como Jesus se referia a si mesmo. O emprego extraordinário que Jesus
fez deste símbolo convenceu em forma geral à erudição bíblica de nosso tempo de
que Cristo adotou o termo apocalíptico "um como o filho de homem", da
visão do Daniel 7:13 e 14, e o elevou a um título messiânico. As similitudes do
livro 1 Enoc 37-71 e a sexta visão em 4 Esdras 13 (ambos os documentos
pós-cristãos) refletem como alguns círculos apocalípticos judeus interpretavam
o personagem daniélico "filho de homem": um Messias preexistente e
celestial que viria à terra como o Juiz de toda a humanidade e governaria sobre
um novo reino terrestre.
A questão é: Como empregou Jesus o título e o que contido
colocou nesta expressão apocalíptica, o "Filho do Homem"? Jesus
explicou que seus milagres de cura ele os fez com um propósito mais elevado:
"Para que saibam que o Filho do Homem tem potestade na terra para perdoar
pecados" (Mar. 2:10). Mas, como pôde ser Jesus ao mesmo tempo o humilde
Filho do Homem e o glorioso ser preexistente da visão de Daniel? O mistério se
intensificou quando Jesus começou a dizer que o Filho do Homem celestial
"devia" sofrer e ser morto, e que ressuscitaria depois de três dias
(Mar. 8:31; 9:31; 10:33, 34).
Entretanto, sua declaração mais profunda foi: "Porque o
Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua
vida em resgate por muitos" (Mar. 10:45). Aqui Jesus se identificou com o
servo sofredor de Isaías 53, que morreria para o benefício de todos. Ao
fazê-lo, Jesus fundiu o servo sofredor da profecia de Isaías com o Filho do
Homem da visão do Daniel. Por assim dizê-lo, esvaziou o conteúdo do servo
sofredor no personagem apocalíptico do Filho do Homem. Tal combinação de dois
personagens messiânicos em profecia era desconhecido. Aos judeus parecia algo completamente
paradoxal. Foi a ideia criadora de Jesus introduzir esta reinterpretação
radical do Filho do Homem daniélico. Cristo viu sua missão como Messias em
forma completamente diferente a todas as expectativas messiânicas no judaísmo.
Colocou sua missão de um Messias sofredor e moribundo dentro da estrutura
apocalíptica de Daniel. Entretanto, a maior surpresa dos judeus foi o escutar
que este humilde filho de um carpinteiro afirmava ser o apocalíptico Filho do
Homem, não só em seus dias, mas também no juízo final. Considere estas
afirmações de Jesus (as ênfases são minhas):
"Porque o que se envergonhar de mim e de minhas
palavras nesta geração adúltera e pecadora, o Filho do Homem se envergonhará
também dele, quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos" (Mar.
8:38).
"Então verão o Filho do Homem, vindo sobre as nuvens
com grande poder e glória" (13:26).
"Tornou a interrogá-lo o sumo-sacerdote e lhe disse: És
tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito? Jesus respondeu: Eu sou, e vereis o Filho
do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do
céu" (14:61, 62).
Nestas declarações dramáticas, Jesus afirmou que a profecia
do Daniel 7 até esperava seu cumprimento futuro e apocalíptico quando Deus
julgue a todos os homens, mas que o Filho do Homem daniélico já tinha aparecido
com outro propósito: trazer salvação da escravidão do pecado. Cristo declarou
claramente que ele, como o Filho do Homem, tinha descido "do céu"
(João 3:13), e que "os anjos de Deus... sobem e descem sobre o Filho do Homem"
(1:51). Dessa maneira Cristo ensinou que tinha estabelecido em Israel uma nova
comunicação entre o céu e a terra por sua autoridade divina (3:31; 6:62). Isto
também envolve sua missão para julgar ao Israel em nome de Deus: "E [Deus]
também lhe deu autoridade de fazer juízo, porquanto é o Filho do Homem"
(5:27), embora o propósito da primeira vinda do Jesus foi explicitamente
salvação e não juízo no sentido de condenação (3:17; 12:47).
Não obstante, João pôde também informar que Jesus veio ao
mundo para um juízo presente: "Para juízo vim eu a este mundo; para que os
que não vêem, vejam, e os que vêem, sejam cegados" (João 9:39). Esta
classe de juízo ou processo de sacudidura era inerente ao oferecimento da
salvação de Cristo, oferecimento que implica necessariamente juízo. Os que
rechaçam o dom de Deus de Jesus o Messias, pronunciaram indevidamente seu
próprio juízo. Escolheram ser condenados. O evangelho de Cristo separa aos que
aceitam o oferecimento da graça daqueles que o rechaçam (ver João 3:18-21;
5:24). A presença de Cristo produz um tempo escatológico de decisão, e esse
tempo é agora. Cada pessoa está compelida a rechaçá-lo ou a reconhecê-lo, e
assim determina de antemão o veredicto do juízo final sobre si mesmo. Cristo
considera como de importância decisiva o que o confessemos como o Filho do
Homem. Por isso, ao cego a quem tinha sarado perguntou: "Crês tu no Filho
do Homem?" (João 9:35). Desse modo Jesus deu a tal pessoa uma revelação
mais elevada de si mesmo. Jesus revelou que era o Messias celestial de que se
falava no livro de Daniel, que viria nas nuvens do céu ao "Ancião de
dias" para receber a glória e o domínio e o reino sobre todos os povos
(Dan. 7:14). Este conhecimento conduz a uma fé mais amadurecida em Jesus.
O ponto importante nos quatro Evangelhos é a mensagem em que
Cristo se referiu à missão do Filho do Homem em uma forma dupla: com respeito a
um cumprimento presente e terreno, e também a uma consumação cósmica futura. Em
outras palavras, Cristo explicou que o apocalíptico Filho do Homem de Daniel
teve um cumprimento histórico em salvação e juízo desde seu humilde primeiro
advento, enquanto também olhou para o futuro, à consumação em salvação e juízo
em seu segundo advento. Em resumo, o juízo de Deus, a vida eterna e a ressurreição
por meio do Filho do Homem são tanto presente como futuras. Esta dupla
aplicação está expressa no Evangelho de João por meio desta frase peculiar:
"Vem a hora, e agora é, quando os mortos ouvirão a voz
do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão. Porque como o Pai tem vida em si
mesmo, assim também deu ao Filho o ter vida em si mesmo" (João 5:25, 26;
ver também 4:23 e 16:32).
Quão surpreendente é que Jesus ensinasse que não é
suficiente crer que haverá uma ressurreição no último dia, como se promete em Daniel
12:2. Sua nova mensagem foi: "Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em
mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo o que vive e crê em mim, não
morrerá eternamente" (João 11:25, 26). Em outras palavras, a vida futura
no glorioso reino de Deus está à nossa disposição pela fé em Cristo agora como
uma qualidade espiritual de vida.
Um emprego duplo similar da terminologia apocalíptica pode
ver-se na forma em que Jesus aplica os conceitos do reino de Deus e sua
"era" (aion) correspondente. Ambas ideias estão combinadas na
proclamação de Jesus: "O tempo está cumprido, e o reino de Deus está
próximo; arrependei-vos e crede no evangelho" (Mar. 1:15; cf. Mat. 3:2;
4:17; 5:17). O chamado de Cristo parece estar motivado por uma urgência
apocalíptica da vinda do reino de Deus, e muito bem pode estar inspirado na
profecia de tempo messiânico das 70 semanas do Daniel 9. (Particularmente
Daniel 2 e 7 prometem a vinda do reino de Deus; Dan. 2:44, 45; 7:27.)
O conceito de Jesus do reino universal de Deus também era
parte das Escrituras. Estas ensinavam que Jeová, o Deus de Israel, é agora Rei
e chegará a ser Rei no futuro "sobre toda a terra" (Núm. 23:21; Deut.
33:5; Sal. 103:19; Isa. 6:5; Dan. 2:44; 4:3; Isa. 24:23; Zac. 14:9). Além
disso, os profetas haviam predito que um filho de Davi chegaria a ser o Rei de
Israel e que, como o Messias do mundo, representaria o governo régio de Jeová
para sempre (2 Sam. 7:12-16; Sal. 2:7-9; 132:11-18; Isa. 9:7; 11:1-5; Miq. 5:2;
Dan. 7:14, 27).
Como já indicamos no capítulo I, o judaísmo farisaico tinha
desenvolvido a esperança de que nos últimos dias o Messias viria no tempo
indicado por Deus, subiria ao trono de Israel e por seu poder quebrantaria aos
príncipes injustos, purificaria a Jerusalém de gentios, quebrantaria toda sua
solidez com vara de ferro e, por último, submeteria todas as nações da terra a
seu governo.
Na pregação de Cristo, o reino de Deus foi o conceito
principal. Seu ensino do reino de Deus, sua proximidade, tal como está representada
por sua própria vida, seu ministério de cura e seu domínio sobre os demónios,
revolucionaram o apocalipticismo judeu que tinha perdido toda esperança de que
Deus reinasse no presente histórico. O primeiro advento de Cristo não foi o fim
do tempo a não ser o poder régio de Deus que pôde "atar" a Satanás e
liberar os homens do poder do mal (ver Mat. 12:29). Jesus insistiu em afirmar
que nele o reino dos céus se aproximou como uma soberania espiritual de Deus
que agora estava ativa em seu oferecimento messiânico de graça e seu domínio
sobre os demónios; uma realidade totalmente diferente do que esperavam os
rabinos judeus e os escritores apocalípticos, pois seu reino não era deste
mundo (João 18:36).
Em resumo, a mensagem de Jesus é que em sua própria pessoa
Deus invadiu a história humana e triunfou sobre o mal. Ao mesmo tempo, Cristo
ensinou que a liberação final viria no fim do tempo, em sua segunda vinda (Mat.
6:10; 13:41-43; 16:27; 19:28; 25:31).
A nova ideia que Jesus apresentou foi que tanto no presente
como no futuro reino de Deus ele intervém como Filho do Homem, e em conexão com
isto aplicou a terminologia apocalíptica de "as duas eras" à sua nova
estrutura escatológica. Enquanto que os apocalipticistas conceberam um dualismo
claro de duas eras ou períodos nos quais a futura era isenta de pecado
substituiria por completo a esta era pecaminosa, Cristo ensinou que com seu
ministério tinha começado a era messiânica e a salvação. Ao mesmo tempo
reconheceu que "a era vindoura" começaria só com a ressurreição dos
mortos (Luc. 20:34-36).
A identificação por parte do Jesus da era messiânica com
"esta era" (Mar. 10:29, 30) destruiu a ideia básica da doutrina das
duas eras dos apocalipticistas. A ênfase de Cristo em sua mensagem foi chamar o
arrependimento (metanoia) e aceitá-lo como Senhor e Messias (Mat. 4:17; 19:21),
condição básica para entrar no reino de Deus no momento presente. Desta forma,
a paz e o gozo messiânicos serão experimentados já agora na alma (João 15:11;
16:33). Esta tensão entre a escatologia inaugurada e a escatologia
apocalíptica, entre o reino da graça e o reino da glória, entre o
"já" e o "ainda não", é característica da mensagem do
evangelho do Novo Testamento em sua totalidade.
O evangelho não é simplesmente as boas novas a respeito da
obra de Cristo no passado ou no futuro. Os poderes da era vindoura já invadiram
esta era em forma dramática desde o Pentecostes, e agora os verdadeiros crentes
"provam" dos poderes do século vindouro mediante Cristo (Heb. 6:5).
Esta verdade do evangelho dissipa o desespero do apocalipticismo judeu. Os
apóstolos afirmaram que a história da salvação entrou agora na era messiânica,
ou os "últimos dias", no qual o poder libertador do Espírito de Deus
está totalmente à disposição de todos os que se encontram em Cristo Jesus (Heb.
1:1, 2; At. 2:17-39).
Hans K. LaRondelle