4 de dezembro de 2011

A LEI e as Leis

Alguns acusam os adventistas por fazerem uma “divisão” na Lei. Uma minoria leiga, por falta de conhecimento teológico, chegam até a defender uma Torah indivisível didaticamente! Pretendem dessa forma atacar os adventistas que supostamente estão “separando” a unidade da Lei bíblica em duas leis distintas e opostas. O fato é que a divisão de leis pode ser feita de duas maneiras: dividindo (classificando) a Torah didaticamente, como fazem todas as outras denominações cristãs, ou distinguindo a Torah como uma Lei Positiva de uma Lei Natural.

DUAS DIVISÕES
  Muitos fazem confusão por não identificarem uma Lei Divina Natural coexistindo com uma Lei Divina Positiva revelada e escritas nas escrituras. A própria razão aponta a existência da Lei Divina Natural (ou Lei Moral). É aquela lei que é constituída por um conjunto de princípios, e não de regras escritas. É constituída pelos princípios que servem de fundamento para a Lei Divina Positiva (a Torah), não por um conjunto de preceitos paralelos à Torah, mas pelos princípios fundamentais do nela.

  Deus ditou e promulgou 603 preceitos por meio de Seu servo Moisés, contudo dez mandamentos, os que tratam da relação do homem para consigo mesmo e para com a Divindade, que expressariam o resumo geral dos princípios da Lei Moral, Deus fez questão de grifar em placas de pedra com Seu próprio dedo! Esse conjunto viria a ser denominado pelas Sagradas Escrituras como “Os Dez Mandamentos” (Dt.4:13 / 10:4). Ou seja, a Lei Divina Positiva é a lei na forma escrita, expressada tanto no Decálogo, para os que são propensos a pecar sejam persuadidos a evitar tais desvios, quanto nas leis ditadas positivamente a Moisés no Sinai.

  O próprio apóstolo Paulo sabia muito bem reconhecer a diferença ente uma Lei Divina Positiva, a Lei revelada nas Escrituras Sagradas, e uma Lei Divina Natural, que abrange questões morais. Ele fala que os gentios “por natureza” eram “lei para si mesmos”, pois tinham essa “lei gravada no seu coração” (Rm.2:14 / ver cap. 1:20–31). Diz o apóstolo:
   “A própria consciência deles mostra que isso é verdade, e os seus pensamentos, que às vezes os acusam e às vezes os defendem, também mostram isso.” (Rm.2:15)
  O Concílio Vaticano II reafirmou tal doutrina em termos muito claros:
   “Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer. Chamando-o sempre a amar e praticar o bem e evitar o mal, no momento oportuno, a voz desta lei lhe faz ressoar nos ouvidos do coração: ‘Faze isto, evita aquilo’. De fato, o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração. Obedecer a ela é a própria dignidade do homem, que será julgado de acordo com essa lei. A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está a sós com Deus e onde ressoa a voz de Deus.” — Em “Const. Gaudium et Spes”, nº 16.
  Ademais, a negação da Lei Moral leva a dizer que os atos mais abjetos podem vir a ser considerados virtudes e vice-versa. Negar essa lei é negar a própria ordem moral. Como dizia J. P. Sartre: “Se Deus não existe, tudo é permitido” [Em “L’Existentialisme est un Humanisme” (1946), p. 114]. Quem admite a existência de Deus Criador admitirá que tenha infundido dentro das criaturas livres, feitas à sua imagem, algumas grandes normas que encaminham o homem à consecução da vida eterna (Jr.31:33–34 / Hb.8:10 / 10:16). Essa orientação interior é precisamente o que se chama de Lei Moral ou Natural. Quem não reconhece a Lei Moral atribui ao Estado civil o poder de definir o bem e o mal éticos — a vontade do Estado torna-se a fonte da moralidade e do direito. Então, o que precisa-se fazer é uma divisão de leis, e não na Lei. Não importa muito se a Torah é divisível ou não. O que importa mesmo é distinguir a Torah como Lei Positiva de uma Lei Natural.

  O problema é que os paradigmas da atualidade tornaram difícil entender a diferença entre a Lei Natural e a Lei Positiva, pois, infelizmente, na sociedade contemporânea “domina um conceito positivista do direito, segundo o qual, a humanidade, ou a sociedade, ou de fato a maioria dos cidadãos, se converte na fonte última da lei civil. (…) Na raíz desta tendência se encontra o relativismo ético…” [Em “Vatican Information Service”, VISnews 071005, 05/10/2007, ano XVII, nº 168]. Seria importante, então, analisarmos esse conceito como transmitido por grandes personalidades do passado.

A DIVISÃO DE LEIS HISTÓRICA
  Três grandes filósofos jurídicos dos séculos XVI e XVII são de grande ajuda para a compreensão do tema. São eles o jusnaturalista Francisco Suárez, o holandês Hugo Grotius e o grande Immanuel Kant, um dos maiores filósofos jurídicos de todos os tempos. É de Kant a declaração: “o céu estrelado por sobre mim e a Lei Moral dentro de mim”. Eles explicaram, por teoria sistemática, as duas dimensões positivas e naturais da lei, estabelecendo dessa forma uma importante distinção entre a Lei Positiva Secular (direito civil), a Lei Divina Positiva (a escrita na Torah) e a Lei Divina Natural (expressa de forma positiva, por exemplo, nos Dez Mandamentos). A tese é de uma obrigação moral, única e geral, que explica todas as outras obrigações morais que se há. Mas para entendermos melhor a questão precisamos voltar à Era Medieval, onde os conceitos de Direito Natural foram aplicados às leis bíblicas para melhor compreensão do sistema legislativo divino.

  Na Idade Média, os filósofos Graciano, Lactâncio e Santo Agostinho desenvolveram a doutrina de que o Direito Natural da antigüidade clássica se identificava com a lei revelada por Deus a Moisés e com a Lei de Cristo, no Evangelho. Mas quem determinou e concretizou essa idéia foi um dos principais nomes da filosofia e teologia medieval, São Tomás de Aquino, que no século XIII fundamentou sua tese sobre leis bíblicas na admissão de três categorias: a Lei Divina Natural, a Lei Divina Positiva e a Lei Eclesiástica. Segundo ele, as leis eternas manifestam a própria razão divina, e sobre elas os homens somente conseguem obter um conhecimento parcial, através das manifestações de Deus.


- Lei Divina Natural

  A ética cristã consiste num agir de acordo com a Lei Moral que é revelada pela natureza racional. Essa lei tem origem na natureza de Deus e expressa Seu caráter e Sua justiça, de forma que é imutável e eterna, abrangendo a todos os seres criados, fixando-lhes na consciência os princípios gerais da moral. Será detalhado as características da Lei Moral mais a frente, conforme o conceito adotado por São Tomás de Aquino.


- Lei Divina Positiva

  Em razão da forma genérica da Lei Divina Natural que a faz parecer incerta em múltiplas circunstâncias, Deus se digna a revelá-la positivamente, de forma escrita e objetiva. Essa Lei Divina Positiva é promulgada através dos 613 preceitos contidos na Torah. A necessidade de leis positivas se encontra também no estabelecimento do serviço cerimonial e sacerdotal, bom como em princípios civis para organizar povo de Israel como sociedade.

  É também a lei do Novo Testamento ou do Evangelho, chamada de Lei de Cristo ou Lei do Amor, pois “a Lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte” (Rm.8:2). Essa Lei Divina Positiva jamais se contraria nem subordina à Lei Divina Natural, que é antecedente, independente e superior à lei positivada. Então, a Lei Positiva participa conceituando a Lei Moral na criatura racional, ou seja, aquilo que o homem é levado a fazer moralmente pela sua natureza racional.


- Lei Eclesiástica
São as leis humanas ditadas através da Igreja, que promulga para dar mais precisão à Lei Divina, seja a Natural seja a Positiva. Jesus Cristo mesmo outorgou à autoridade eclesiástica a faculdade de legislar (Mt.16:16–19 / 28:18–20 / Jo.21:15–17). Fazem parte desse grupo ordenanças e ditames transmitidas pelos profetas no Antigo Testamento e advertências e leis apostólicas transmitidas no Novo Testamento. Na opinião de São Tomás de Aquino, aqui também deveriam ser incluídas as tradições rabínicas para a Igreja veterotestamentária e as ordens papais para a Igreja neotestamentária.