“Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim ab-rogar, mas cumprir.” Mat. 5:17. A atitude de Jesus face à Tora desconcertou muitos dos Seus contemporâneos e ainda continua a desconcertar muitos dos nossos. Como entendeu Jesus a Lei? Segundo alguns, como uma realidade negativa e caduca, um obstáculo à salvação e à vida espiritual que Ele Se propôs abolir. Ele teria declarado que “a Lei e os profetas duraram até João” (Luc. 16:16). Outros pensam que Jesus teria visto a lei como uma realidade positiva, um modelo de conduta permanente que veio explicar. Não afirmou Ele que não tinha vindo ab-rogar a Lei mas sim cumpri-la (Mat. 5.17)? para responder a esta questão polémica, evitando reduções e simplificações, há que examinar (como no caso de um diamante) as múltiplas facetas dessas declarações.
1. CONSIDERAÇÕES SOBRE JESUS E A LEI.
Ponto 1: Os evangelhos deixam bem claro que, desde a Sua infância, Jesus observava cuidadosamente as leis do Seu povo E, cumprindo-se os dias da purificação dela, segundo a lei de Moisés, o levaram a Jerusalém, para o apresentarem ao Senhor
“Segundo o que está escrito na lei do Senhor: Todo o macho primogénito será consagrado ao Senhor; E para darem a oferta segundo o disposto na lei do Senhor: Um par de rolas ou dois pombinhos. Havia em Jerusalém um homem cujo nome era Simeão; e este homem era justo e temente a Deus, esperando a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava sobre ele. E fora-lhe revelado, pelo Espírito Santo, que ele não morreria antes de ter visto o Cristo do Senhor. E pelo Espírito foi ao templo e, quando os pais trouxeram o menino Jesus, para com ele procederem segundo o uso da lei, Ele, então, o tomou em seus braços, e louvou a Deus, e disse: Agora, Senhor, despedes em paz o teu servo, Segundo a tua palavra.” Lucas 2:22-29.
Ponto 2: Usava as roupas regulamentares “E eis que uma mulher que havia já doze anos padecia de um fluxo de sangue, chegando por detrás dele, tocou a orla de sua roupa.” Mateus 9:20 (cf. Mat. 14:36).
Ponto 3: Assistia fielmente, cada Sábado, aos serviços na sinagoga “E, chegando a Nazaré, onde fora criado, entrou num dia de sábado, segundo o seu costume, na sinagoga, e levantou-se para ler.” Lucas 4:16.
Ponto 4: Referia-Se à Lei como sendo a expressão da vontade de Deus, tanto para Si mesmo como para os outros: “Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos” Mateus 19:17. E disse aos Seus discípulos: “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, do mesmo modo que eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor” (João 15:10; cf. Mar. 10:18-27; Luc. 10:25-37, etc.).
Ponto 5: As Suas acções não mostram que Ele minimize as transgressões da Lei ou que as considere de forma ligeira. Ao perdoar aos pecadores, Jesus reconhece os seus erros e, por conseguinte, o valor da Lei, como critério de conduta (Luc. 15). Além disso, ao oferecer o Seu perdão aos acusados das faltas mais graves, convida-os sempre a voltar ao respeito pela Lei. Por isso, disse à mulher adúltera: “Eu também não te condeno; vai, e não peques mais” (João 8:11; cf. 5:14).
Se tomarmos em consideração o conjunto das declarações de Jesus, vemos que para Ele a Lei era ao mesmo tempo uma preciosa herança que importava conservar e uma realidade mal compreendida, um documento que era preciso explicar.
2. A LEI NÃO SALVA.
Jesus quis transmitir a todos quantos viviam sob o regime da Lei a mensagem de que a salvação não é questão de observâncias mas de relacionamentos. O verdadeiro salvador não é a Lei, mas sim o seu Autor. Se pensarmos em revista todas as passagens em que Jesus fala da Lei, descobrimos que para Ele:
Ponto 1: A Lei expressa a vontade permanente de Deus para o homem: “não vim para suprimir nem um “i” nem um “til” da Lei (Mat. 5:17, 18; Luc. 16:17).
Ponto 2: A Lei, como revelação divina, conserva a autoridade de Quem a formulou: “Conforme à Lei e aos Profetas” (Mat. 11:13; 12:5).
Ponto 3: A finalidade da Lei é proteger a vida em todas as suas dimensões: “Se queres entrar na vida guarda os mandamentos” (Mat. 19:17; Mar. 10:19; Luc. 18:20).
Ponto 4: Para compreender a Lei, desfigurada pelas interpretações e tradições humanas acrescentadas, o homem devia procurar a sua intenção original: “ao princípio não foi assim” (Mat. 19:8).
Ponto 5: Na Sua reformulação da Lei, Jesus não reduz as suas exigências, mas aprofunda as suas intenções. Em vez de Se ficar pelas formas, vai diretamente para as motivações: “Ouvistes o que foi dito aos antigos: não matarás; eu, porém, vos digo: qualquer que sem motivo se encolerizar contra o seu irmão será réu de juízo” (Mat. 5:21, 11,48).
Ponto 6: Como a Lei se resume no amor e este constitui a sua essência, “quem ama a Deus, guarda os seus mandamentos” (Mat. 22:35-40; João 14:15-23; 15:10).
Ponto 7: Sendo o seu melhor intérprete, Jesus revela o sentido da Lei (Luc. 24:44) e ajuda-nos a observá-la e vivê-la melhor: “Sem mim, nada podeis fazer” (João 15:5).
3. COMO É COMPREENDIDA A LEI PELOS APÓSTOLOS?
Como conciliar o valor permanente que os Evangelhos dão à Lei com as declarações negativas que encontramos nas epístolas de Paulo (Rom. 4:15; 5:20; 7:1-6; Gál. 3:19-25, etc.)? A formulação ambivalente dessas declarações é sem dúvida o que dificulta a compreensão da teologia paulina da lei. Embora uma série das suas afirmações sobre a Lei seja altamente positiva, na linha do Antigo Testamento: “a lei é santa e o mandamento santo, justo e bom” (Rom. 7:12), toda uma outra série de daclarações parece menosprezar, subestimar a Lei, considerando-a como uma realidade caduca: “pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça” (Rom. 6:14); “agora estamos livres da lei” (Rom 7:16, etc.). Paulo afirma, por um lado, que a fé cristã “confirma a lei” (Rom. 3:31), mas, por outro lado, qualifica o regime da Lei como “ministério da condenação e da morte” (II Cor. 3:7-9), de cuja a maldição Cristo no libertou (Gál. 3:13). Estas noções, difíceis de integrar num sistema coerente, e explicadas de maneira diferente por diversas correntes teológicas, têm preocupado os cristãos desde as suas origens (cf. Act. 15:1; Gál. 2:15,16; Tiago 2:14-26, etc.).
Face a estas aparentes contradições, certos teólogos renunciam a clarificar a posição de Paulo, concluindo que ele se contradiz. Outros, com base nas suas declarações negativas, deduzem que Paulo esvaziou o cristianismo da Lei, transformando-o num espaço livre, sem normas, com uma ética baseada noutros pressupostos (ver H. Huebner, Law in Paul`s Thought, T.T. Clark, Edimburgo, 1984).
Ponto 1: Ninguém pode abstrair-se das suas vivências. Saulo de Tarso é discípulo de Gamaliel (Act. 22:3), sucessor de Hillel, o maior líder do farisaísmo do I século. Como bom fariseu, Saulo considera-se a si mesmo observador irrepreensível da Lei, que respeita até ao ponto de se tornar perseguidor dos presumíveis transgressores da mesma. Quando obtém uma autorização oficial para atacar os cristãos, incluindo na cidade de Damasco situada fora da jurisdição da Palestina, um encontro pessoal com Jesus ressuscitado lança-o por terra: “Saulo, Saulo, porque me persegues?” (Act. 9:4, ver 9:1-19).
Ponto 2: Este encontro, que lança por terra as suas crenças teológicas farisaicas, muda radicalmente a vida de Saulo. O Deus de Jesus aceita o perseguidor tal como é. A sua ideia de uma religião em que o favor divino se ganha através das observâncias desaparece. Aquele que recalcitrava “contra os aguilhões”, vê-se recebido por Deus não por causa das suas boas obras, mas apesar dos seus erros. Isto transforma completamente as suas estruturas mentais e a sua compreensão da Lei.
Ponto 3: Paulo sente a obrigação de explicar a sua compreensão da Lei face ao legalismo de uns e à anarquia dos outros; ou, para usar os seus próprios termos, entre o “nomismo” (o culto da lei) de uns e a “anomia” (a ausência da lei) de outros (I Cor. 9:20,21). A partir da sua experiência pessoal o apóstolo vai tentar a difícil tarefa de fazer compreender a função da Lei a uma Igreja composta de gente deformada pelo moralismo ou largamente indiferente à moralidade.
Ponto 4: A teologia farisaica em que Paulo se formara definia o pecado como “transgressão da Lei” (1 João 3:4). Ora, o Paulo cristão vê mais do que isso. Se a essência da Lei é o amor, o pecado não é só a transgressão de um código, mas, sobretudo, a transgressão de uma relação, de um respeito, de uma vontade, isto é, a transgressão do amor. Todos os seres humanos se encontram, por conseguinte, em situações de transgressão (quer dizer, de pecado), tanto os pagãos, que ignoram quase tudo sobre a vontade divina (Rom. 1:18-32), como os judeus que, mesmo conhecendo a Lei, também a transgridem (Rom. 2:17-29).
Ponto 5: Como se cumpre plenamente a Lei de Deus?: “A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei. Com efeito: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o cumprimento da lei é o amor.” Romanos 13:8-10.
Ponto 6: Que importa mais que qualquer cerimónia externa?: “A circuncisão é nada e a incircuncisão nada é, mas, sim, a observância dos mandamentos de Deus.” 1 Cor. 7:19.
Ponto 7: Como define o sábio e inspirado Tiago a Lei de Deus?: “Porque qualquer que guardar toda a lei, e tropeçar em um só ponto, tornou-se culpado de todos. Porque aquele que disse: Não cometerás adultério, também disse: Não matarás. Se tu pois não cometeres adultério, mas matares, estás feito transgressor da lei. Assim falai, e assim procedei, como devendo ser julgados pela lei da liberdade.” Tiago 2:10-12.
Conclusão: “E o dragão irou-se contra a mulher, e foi fazer guerra ao resto da sua semente, os que guardam os mandamentos de Deus; e têm o testemunho de Jesus Cristo.” “Aqui está a paciência dos santos; aqui estão os que guardam os mandamentos de Deus e a fé de Jesus.” Apoc. 12:17; 14:12.
“A Lei Moral é parte da lei natural do Universo. Justamente como uma lei natural violada, no mundo material, traz as suas consequências inevitáveis, assim a Lei Moral transgredida traz as suas inevitáveis consequências nos mundos espiritual e mental.” The Episcopal Church Sunday School Magazine (Revista da Escola Dominical), ps. 183,184.
“As leis básicas de moralidade, e em particular os Dez Mandamentos, permanecem até ao fim do tempo como o alicerce moral e espiritual sobre o qual se acha construída a religião do Novo Testamento.” The Snowden-Douglass Sunday School Lessons, 1946, p. 279.
Jesus foi claro, os apóstolos Paulo, Tiago, João e Pedro foram claros. Os autores bíblicos já tinham alertado os seus leitores contra os perigos dos dois extremos: a hipocrisia do legalismo e o egoísmo camuflado da anarquia. Do ponto de vista divino, a Lei revela as expectativas de Deus para o homem. Ela opõe, necessariamente, a vontade divina à vontade humana, na vivência de muitas situações concretas. As suas exigências encontram na liberdade humana o seu melhor aliado e o seu pior inimigo. Para Paulo e para todo o cristão genuíno o respeito da Lei é, o resultado da sua relação com Cristo. E essa relação é tão completa que ele pôde – e nós também - : “Vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” Gálatas 2:20.