10 de outubro de 2011

A ORIGEM HISTÓRICA DA GUARDA DO DOMINGO

Na instituição do sábado está implícito o próprio acto de bênção, santificação e separação de um dia para a humanidade e isso indica uma função permanente. A santificação do sábado significa que Deus desejou entrar no tempo humano. O que toma um período de tempo ou um lugar santo é a presença de Deus.
Ao santificar o sábado e entrar no tempo humano Deus demonstra a Sua disposição em entrar na própria carne humana. Assim, o sábado é uma prefiguração da encarnação, um símbolo e anúncio da própria encarnação.
Na História da Salvação nós temos continuidade, não interrupções. As instituições estabelecidas na Criação, tal como o sábado, o trabalho, o repouso, o matrimónio, são instituições que na verdade prosseguem ao longo da História da Salvação. Contudo, há diferentes momentos na História da Salvação em que essas instituições adquirem novo significado. No relatório do Génesis o sábado obtém um significado cosmológico, proclama ao mundo que Deus é o perfeito Criador e que ficou perfeitamente satisfeito com a Criação que havia realizado. Assim, em Génesis o sábado transmite essa mensagem da perfeição divina no que concerne à Criação.
Mas se seguirmos de Génesis para Êxodo, aprendemos que Deus não só criou o mundo, mas as pessoas. E formou um novo povo, Israel, ao qual concedeu o sábado para simbolizar o desejo do Criador em restaurar o interrompido relacionamento que o pecado produziu, separando o Criador de Suas criaturas. Assim, em Êxodo encontramos o sábado associado com a Redenção.
Os Dez Mandamentos se iniciam dizendo — "Eu sou o Senhor teu Deus que te tirou da terra do Egipto." Ele é o Libertador, e para que fosse mantida a lembrança desse Libertador, Deus ordenou: "Lembra-te de santificar o dia de sábado." Lembra-te por livrar o teu servo, tua serva, teu filho, tua filha, dando-lhes liberdade e, em certo sentido, redenção a todos os israelitas de modo a que o próprio Deus fosse lembrado como o Libertador. E essa mensagem é particularmente expressa em Deuteronómio 5:15 onde o motivo dado para a guarda do sábado não é a Criação, mas a Redenção. Nesse sentido é que a passagem declara: "Lembra-te de que foste servo na terra do Egipto, e que o Senhor teu Deus te tirou dali com mão forte e braço estendido; pelo que o Senhor teu Deus te ordenou que guardasses o dia do sábado."
Sendo, pois, que o sábado não é apenas símbolo da Criação, mas também da Redenção, tendo carácter cósmico, universal, a sua obrigatoriedade é também universal.

Há dois factores principais para a transição do sábado para o domingo. Por um lado temos o anti judaísmo, ou seja, a necessidade que surgiu [entre os cristãos dos primeiros séculos] de separarem-se, diferenciarem-se dos judeus. Foi este realmente um factor preponderante que induziu muitos cristãos a abandonarem todas as festividades associadas com os judeus.
Teve lugar na primeira parte do século II, particularmente na regência do Imperador Adriano. Ele reinou de 117a 138 e foi quem proibiu categoricamente a observância do sábado e a pratica do judaísmo. Isto aconteceu porque os judeus estavam constantemente a revoltar-se contra o domínio dos romanos sobre sua terra.
Quando os romanos se viram ante a persistente luta de independência da parte dos judeus, sentiram a necessidade de impor uma legislação muito restritiva e repressiva e uma das consequências foi a proibição rigorosa da observância de festividades judaicas como a Páscoa e o Sábado.
Em consequência dessas medidas restritivas contra os judeus, os cristãos de Roma julgaram necessário demonstrar perante as autoridades a separação e diferenciação dos cristãos em relação aos judeus pela mudança das festividades judaicas a dias diferentes. Por exemplo, a Páscoa judaica, que até aquele tempo era celebrada pêlos cristãos em geral no dia 14 de Nisã (uma data fixa que podia ocorrer em qualquer dia da semana) foi transferida para o domingo. Semelhantemente, o repouso foi transferido do sábado do sétimo dia para o primeiro dia da semana.
Na verdade, o abandono do sábado foi motivado primariamente pela necessidade sentida pelos cristãos de se separarem dos judeus a fim de evitar as medidas repressivas e as penalidades impostas sobre a comunidade judaica.
Mas, pode surgir a pergunta — por que foi escolhido o domingo, quando outro dia qualquer poderia cumprir a mesma finalidade? Sexta-feira, por exemplo, poderia muito bem comemorar a Paixão de Cristo e contribuir para diferenciar cristãos e judeus! Mas constata-se que a razão da escolha do domingo tem a ver com a prevalecente veneração do deus-Sol. Quando remontamos ao século II, descobrimos que o deus-Sol tornou-se a divindade predominante no Império Romano e isso contribuiu para o acontecimento que debatemos.
Num calendário descoberto pela Arqueologia, do século I, podemos ver que Saturni, que significa "dia de Saturno", é o dia nº 1 e o “dia do sol” é o nº 2. Contudo, ao chegarmos ao século II, o “dia do Sol" avança
para a posição nº 1 e o "dia de Saturno" toma a posição do sétimo dia.
Quando descobrimos esta “promoção” do “dia do Sol” para o primeiro dia da semana no século II, perguntamo-nos: seria possível que essa circunstância no mundo pagão romano tenha influenciado os cristãos a escolherem exactamente o mesmo dia que havia sido posto em proeminência naquele tempo? A fim de comprovar a validade de tal raciocínio, investigando a influência do culto ao Sol sobre a comunidade cristã da época, e descobrimos alguns factos muito interessantes como o de que o culto ao Sol influenciou os cristãos de muitas maneiras.
Por exemplo, a) os cristãos originalmente oravam voltados para Jerusalém, mas por influência do culto ao Sol passaram a orar voltados ao Oriente, na posição do nascer do Sol; b) o próprio dia do Sol, o "Sol-Invictus", foi escolhido para celebrar o aniversário de Cristo; c) a própria simbologia do Sol foi usada para representar a Cristo.
Este mosaico, que foi reproduzido na Biblical Archeology Review [Revista de Arqueologia Bíblica] de Setembro de 1978 apresenta Cristo como o deus-Sol subindo no carro do Sol, com uma aura de luz em torno da cabeça. Isso é de cerca dos anos 200 a 240 AD e constitui a mais antiga representação pictórica de Cristo como o deus-Sol que chegou até aos nossos dias, o que realmente demonstra que a simbologia do deus-Sol tinha grande influência sobre o pensamento cristão.
Estas são evidências indirectas. A evidência mais directa pode ser encontrada nos documentos cristãos que usam o motivo do Sol para justificar a observância do domingo, sendo as duas razões predominantes para justificar a guarda do domingo: 1°— no primeiro dia Deus criou a luz; 2° — o primeiro dia foi também aquele em que o Sol da justiça ressurgiu. Assim, os motivos do Sol e da luz estão estreitamente relacionados, de modo que, a par do anti judaísmo, o culto ao Sol contribuiu para levar os cristãos dessa época a abandonarem o sábado e adoptarem o domingo como dia de culto.
O mitraísmo era, na verdade, apenas um pequeno fragmento no conjunto do culto ao Sol entre os pagãos do Império Romano. Era mais um culto individual, praticado com carácter particular, no contexto das muitas manifestações de culto à divindade solar, que predominava à escala nacional.
Os autores do Novo Testamento não fazem referência directa, mas apenas indirecta, ao mandamento do sábado. Como podemos comprovar que os cristãos primitivos observavam o sábado em vista da falta de declaração mais específica indicando que o fizessem?

O Novo Testamento não é "novo" em termos de nova revelação, mas é, antes, uma continuação, cumprimento e esclarecimento do Velho Testamento. No Novo Testamento não encontramos realmente os outros nove mandamentos numa forma nova. O que o Novo Testamento provê via de regra é um esclarecimento do espírito da lei. E se reconhecemos isto, então veremos que o Novo Testamento concede mais esclarecimento para o sábado do que para qualquer outro mandamento.
Quem ler o Novo Testamento e tomar nota de todas as referências ao sábado ficará surpreendido em verificar que uma boa porção do ministério de Jesus, tal como registado no Novo Testamento indica um envolvimento de Cristo numa observância sabática provocativa, causando muitos debates a respeito da guarda do sábado.
Agora, a indagação que temos a fazer é — por que esse material foi registado? Por que os redactores dos evangelhos, trinta ou quarenta anos após a morte de Cristo, decidiram registar e dar ampla cobertura ao ministério de Cristo no sábado? Ora, a resposta é óbvia — o material que temos nos evangelhos é o testemunho da igreja sobre o Salvador e Seu testemunho foi registado à luz de problemas existentes. Em outras palavras — a igreja primitiva tinha o problema de clarificar o significado do sábado na dispensação cristã; e para fazê-lo eles registaram o ministério sabático de Cristo que proveu, ademais, a linha de conduta sobre o significado de amar o próximo, honrar os pais, não matar ou outros preceitos divinos.
Agora, o que precisamos saber é — qual o significado do sábado à luz do ministério de Cristo? Qual é a clarificação sobre o sábado que o Salvador faz? Cristo começou o Seu ministério num dia de sábado, anunciou o Seu ministério como sendo o cumprimento das promessas sabáticas de liberdade em Lucas 4:18 e intensificou o ministério sabático levando redenção física e espiritual de modo que aqueles que foram curados por Jesus lembrar-se-iam do sábado como o dia de total redenção física e espiritual.
Também percebemos que Jesus encerrou o Seu ministério numa tarde de sexta-feira. E quando Ele disse está consumado", descansou no sábado segundo o mandamento. Isso quer dizer que à luz do Calvário, o sábado é não apenas um memorial da Criação completada, mas também um memorial da completa Redenção. Também significa que quando entramos na experiência da salvação ao repousarmos fisicamente, Jesus nos concede o Seu repouso espiritual, o repouso do perdão, o repouso da paz, o repouso da salvação.
Vemos assim que o Novo Testamento tem muito a dizer sobre o sábado. É isso que constatamos no ministério de Cristo, no ministério de Paulo, na Epístola aos Hebreus que ressalta o sentido profundamente espiritual do sábado. Finalmente, o sábado é o dia em que celebramos a totalidade da bênção de Deus — bênção da Criação, bênção da Redenção, bênção da Restauração final. O sábado provê uma janela para olhar à eternidade, à obra original de Deus na Criação, à completa Redenção em Cristo e à final restauração.
Como podemos apresentar o tema do sábado num contexto que evite parecermos legalistas?
Uma das acusações lançadas contra os adventistas do sétimo dia é a de que somos legalistas porque realçamos o quarto mandamento. Podemos inicialmente assinalar que ninguém é rotulado ou designado como legalista por apenas pregar os outros nove mandamentos.
Assim, não é exactamente o pregar sobre o mandamento, ou enfatizá-lo, que resulta em legalismo. Legalismo é o sistema pelo qual a observância de qualquer regra é considerada a base da salvação. E realmente devemos evitar apresentar a guarda do sábado como a garantia da salvação, e eu creio que a razão de tal atribuição ser-nos feita é porque em nossa ênfase escatológica apresentamos às vezes o sábado como o selo de Deus, o que significa que se aceitamos o sábado nós somos selados, protegidos, e ficamos seguros para o tempo de angústia. Com isso, muitas pessoas tendem a pensar que por terem aceito o sábado, receberam a garantia da salvação. Julgam-se, então, salvas por guardarem o sábado.
Temos realmente que rectificar esse raciocínio e ajudar o nosso povo e os cristãos em geral a entenderem que no sábado somos ensinados, não que trabalhamos para nossa salvação, e sim que repousamos de nossos trabalhos. Durante a semana temos realmente que trabalhar e por fazê-lo podemos obter a sensação de que somos independentes, nós próprios, por assim dizer, sendo o criador e salvador. Mas a mensagem do sábado — do verbo hebraico shabbath — é cessar, descansar. Por que temos de descansar? Porque temos de permitir que Deus opere em nós.
Assim, o repouso sabático indica que aquele que o pratica percebendo o seu real significado está a dizer de si para si — eu não sou auto-suficiente, mas insuficiente; não sou meu próprio criador, mas reconheço o Deus Criador; e estou a repousar hoje porque ao fazê-lo desejo pôr-me à disposição de Deus para que Ele me possa dar por repouso — isto é, como um presente, e não por obras — a provisão da salvação. Com o repousar no sábado, proclamamos por nosso exemplo que aceitamos a salvação como um presente, e não como uma obra meritória.
Portanto, a verdadeira compreensão do descanso sabático é realmente salvação pela graça, e não por obras.
Nós trabalhamos durante a semana, mas repousamos no sábado para proclamar a nossa fé no divino Criador que nos deu o dom da vida no princípio, vida que foi concedida por Jesus Cristo, vida que se torna uma realidade para nós no dia de sábado quando, à semelhança de Maria, irmã de Marta, tomamos tempo para estar com Jesus dedicando-Lhe a nossa atenção integral.
O facto de Cristo ter ressuscitado num domingo não torna esse dia o mais significativo da semana e não justificaria a mudança da observância do sábado para o domingo?
Um estudo honesto e imparcial de todos os documentos do Novo Testamento, bem como dos primeiros documentos cristãos fora do Novo Testamento, revelam conclusivamente que a Ressurreição de facto não exerceu papel destacado na escolha específica da observância do domingo. Pois, 1° — o dia da Ressurreição não é, como tal, jamais mencionado no Novo Testamento. A expressão "dia da Ressurreição" é encontrada apenas por volta do fim do século II. Antes disso, particularmente nos evangelhos e no Novo Testamento, a expressão é "primeiro dia da semana". Ora, se esse dia tivesse tomado na época o memorial da Ressurreição, então a expressão “dia da Ressurreição" estaria em uso. O próprio facto de que tal expressão está ausente no Novo Testamento indica que o primeiro dia da semana não era considerado ainda o "dia da Ressurreição"; 2° — no Novo Testamento não encontramos uma ordem ou instrução para celebrar a Ressurreição de Cristo no exacto dia semanal em que ocorreu. Temos ordens quanto ao baptismo, temos ordens quanto à Ceia do Senhor ("fazei isto em memória de Mim"), temos ordens quanto ao lava-pés ("dei-vos o exemplo para que como Eu vos fiz, façais vos também"), mas nenhuma ordenança ocorre quanto à celebração do dia da Ressurreição.
Contudo, mesmo considerando o fato de que Jesus ressuscitou num domingo, a pergunta que temos a fazer é — acaso esse fato requer que o dia seja, então, posto à parte para
comemorar tal evento? Parece-me que o evento da Ressurreição pressupõe que o mundo não deve ainda repousar, por duas razões, pelo menos: 1a
— porque o dia da Ressurreição não assinala a complementação do ministério terrestre de Cristo, o que se deu na sexta-feira à tarde, quando declarou "está consumado", e então repousou segundo o mandamento. Antes, marca o início do novo ministério de Cristo. Semelhantemente ao princípio da Criação, o primeiro dia da semana pressupõe atividade, antes que repouso; 2º — as declarações de Jesus no dia da Ressurreição não eram convites para adoração. Jesus não disse, no dia da Ressurreição — ‘vinde à parte e adorai", mas ordenou às mulheres "Ide à Galiléia e dizei aos irmãos", e aos discípulos — “Ide, ensinai, fazei discípulos, batizai." Eram declarações que implicavam atividade, e não repouso. Então há o argumento baseado na Ceia do Senhor que muitos consideram o próprio âmago do culto dominical, em honra da Ressurreição. E outra vez podemos perguntar — foi a Ceia do Senhor celebrada pela igreja primitiva como memorial da Ressurreição? Tanto o Novo Testamento como os primitivos registros cristãos nos dizem que a Ceia do Senhor não estava associada à Ressurreição.
Podemos considerar o que disse Paulo, por exemplo, em I Coríntios 11, onde a Ceia do Senhor é apresentada sem ligação com um tempo específico (ver versos 17, 20, 33, 34). Isso implica qualquer dia da semana, porque as autoridades romanas proibiam reuniões noturnas, não só dos cristãos como mesmo dos pagãos. E para evitar suspeitas das autoridades, os cristãos reuniam-se em diferentes dias, em ocasiões diversas. Assim, não só o tempo era indefinido, mas o significado não era Ressurreição.
Paulo declarou ter recebido essa tradição dos próprios apóstolos. E qual era a tradição? A de que, partindo o pão e bebendo o vinho, "anunciais a morte de Jesus". Portanto, o sentido da Ceia do Senhor é morte, sacrifício. Nenhuma menção se faz à Ressurreição. Isto não quer dizer que a Ressurreição não fosse importante. Paulo dá crédito e valor à Ressurreição em I Coríntios 15, mas a Ressurreição deveria ser celebrada por uma forma de vida, por andar em novidade de vida. Após morrermos à semelhança de Cristo no batismo, somos ressuscitados com Ele e andamos em novidade de vida, mas não há associação disso com qualquer dia semanal em particular (ver Romanos cap. 6).
Professor, entre outras matérias, de História Eclesiástica, de que é doutor, o italiano Samuel Bacchiocchi foi o primeiro não-católico a graduar-se na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma instituição jesuíta fundada há mais de quatro séculos por Inácio de Loyola pela qual passaram muitos eclesiásticos que chegaram a ser cardeais e papas.
Tese doutoramento From Sabbath to Sunday [Do Sábado Para Domingo], de 372